Saturday, March 29, 2014

Alguns comentários ao Léxico Fataluco-Português de Alfonso Nácher


Pe. Alfonso Nácher com alunos de Fatumaca, Baucau, Timor-Leste.
Foto do Arquivo Salesiano de Comoro (Nácher 2012, p. 74)

De acordo com o que foi exposto na postagem anterior, dou continuidade agora, realizando alguns comentários ao Léxico Fataluco-Português (Para ler a postagem anterior sobre a obra clique aqui). Primeiramente, falarei dos artigos que estão na nova edição de 2012 e que antecedem o manuscrito de Nácher. Posteriormente, escreverei sobre a biografia do padre e as referências para maiores informações. Finalmente, farei alguns comentários sobre a temática linguística e lexicográfica.

Esta edição do Léxico Fataluco-Português dos Salesianos de Dom Bosco Timor-Leste, de 2012, apresenta três artigos importantes que valem os comentários, são eles: Uruvatju e Tjiapu: Genealogias Invisíveis da Etnografia Missionária em Timor-Leste, de autoria de Frederico Delgado Rosa; Oleu Pitine de Efrén Legaspi Bouza; e A Religião em Timor-Leste a partir de uma Perspectiva Histórico-Antropológica, de Alberto Fidalgo Castro.

O artigo de Delgado Rosa, Uruvatju e Tjiapu: Genealogias Invisíveis da Etnografia Missionária em Timor-Leste, analisa principalmente a produção bibliográfica e científica da atividade missionária em Timor-Leste. Basicamente, os missionários no país produziram muito material em duas áreas do saber, são elas: antropologia e linguística. Na parte inicial do artigo, o autor enfatiza a existência de muitos manuscritos perdidos e não publicados que possuíam estudos das línguas nativas leste-timorenses (p. 14). Na outra parte de seu artigo, Rosa chama atenção para a questão da cristianização/catequização em Timor-Leste que às vezes era feita por imposição à força na população nativa, ocorrendo um choque cultural em que prevalecia a cultura ocidental e a cultura local era estigmatizada ou até destruída. O mesmo ocorre na questão linguística em que eram impostos empréstimos de itens culturais da religião cristã, com lexemas como Diabo, Deus, igreja, catecismo etc. que não existiam nas línguas nativas (p. 18). O autor discute isso no caso dos dicionários da língua Tetun: Dicionário Portuguez-Tétum de Sebastião Aparício da Silva, de 1889, e Dicionário Teto-Português de Rafael da Dores, de 1907, em que a tradução de certos conceitos era usada como ferramenta para destruição da cultural local ou para instaurar o temor aos nativos (p. 22). Para saber um pouco mais desses dicionários, acesse aqui.
    
O artigo Oleu Pitine de Efrén Legaspi Bouza é uma biografia detalhada do padre Alfonso Nácher, que é um resultado de extensa pesquisa biográfica com base em documentos consultados e analisados, assim como entrevistas realizadas pelo autor (p. 42). Ainda, o autor se baseou em sua pesquisa inicial na pequena biografia escrita por Geoffrey Hull como introdução à publicação do manuscrito (p. 41), em 2003 (maiores informações são encontradas na postagem anterior já citada). Não falarei mais da biografia, pois a seguir apontarei as principais informações sobre a vida do padre Nácher.

O terceiro artigo, de autoria de  Alberto Fidalgo Castro, intitulado A Religião em Timor-Leste a partir de uma Perspectiva Histórico-Antropológica, trata-se de uma extensa análise antropológica da religião em Timor-Leste. O autor divide seu escrito em três partes (p. 82), oferecendo primeiramente um panorama dos estudos antropológicos em Timor-Leste, para depois analisar a presença da religião católica no país e, na terceira parte, contrastar o choque entre a religião católica e as práticas animistas dos diferentes povos leste-timorenses, principalmente por meio do estudo dos mitos e outros gêneros da literatura oral leste-timorense (p. 99). O que é muito válido aqui para os estudos linguísticos é o fato de que não é possível desassociar o estudo da língua dos aspectos culturais do povo falante da língua (p. 95). Isto fica bem explícito nesses artigos introdutórios comentados nesta postagem. Nos estudos antropológicos sobre aspectos da cultura do povo Fataluku, assim como no próprio manuscrito elaborado pelo Pe. Nácher, quando se estuda a cultura dos Fataluku se aborda certas questões linguísticas, e quando se estuda a língua Fataluku, um conhecimento da cultura deste povo é importante para elucidar certas questões que possam surgir durante a investigação.

Sobre a biografia de Alfonso Nácher, o artigo Oleu Pitine, de Efrén Legaspi Bouza, fornece informações detalhadas aos interessados nos estudos biográficos, ou em saber aspectos específicos da vida do padre. Na introdução de Hull feita ao Léxico Fataluco-Português é possível encontrar uma nota biográfica a respeito de Nácher (p. 123). Ainda, há um artigo interessante de Susana de Matos Viegas, intitulado Três etnografias dos anos 1970: Os Fataluku, em que a autora analisa três importantes estudos sobre os Fataluku, sendo o de Nácher um deles (o texto pode ser acessado aqui). Para não repetir a biografia presente no livro, citarei aqui as informações biográficas oferecidas pela autora, apenas complementada pela nota de Hull:      

[...] o Padre Alfonso Maria Nacher y Lluesa [...] nasceu em Valência (Espanha), tendo recebido em 1932 a ordenação sacerdotal. Em 1941-1942 fez o curso de ciências naturais e em 1952 foi director do colégio de Santo António no Estoril (cf. Hull, 2003: 135). Em 1955, o Padre Alfonso Nacher foi para Timor-Leste como voluntário da Missão Salesiana de Fuiloro onde permaneceu até 1968. 

(Viegas 2011, p. 2)

O afamado colégio salesiano e escola de ofícios de Fatumaca, uma aldeia situada nas montanhas a sul de Baucau, esteve sob a direcção do Padre Alfonso Nácher desde 1973 até 1979, o período traumatizante em que se assistiu ao fracasso do processo de descolonização no Timor Português, à violenta guerra civil e à sangrenta invasão indonésia. Entre os anos 1979 e 1982, quando as autoridades indonésias obrigaram a população animista da ‘província vigésima-sétima’ a adoptar uma religião oficialmente reconhecida pelo Estado, o Padre Alfonso e os seus confrades da missão de Lospalos tiveram que preparar para o baptismo cristão milhares de Fatalucos que tinham escolhido o catolicismo (naquela época os gentios constituiam 64% de uma população regional de 32.021). 
Em 1983, ainda vivaz e activo apesar dos seus 78 anos, o Padre Alfonso voltou a Fatumaca como mestre de noviços, sucedendo ao Pe. Carlos Filipe Ximenes Belo, que o Papa João Paulo II acabara de nomear administrador apostólico da diocese de Díli. Terminada essa função dois anos depois, pôde então dedicar-se ao ensino, sobretudo da matemática e do inglês. 
Aos 87 anos de idade, no dia 24 de Maio de 1992, o Padre Nácher festejou o jubileu de diamante da sua ordenação. Nos sete anos que se seguiram e até falecer, o idoso missionário, embora afectado por senilidade progressiva, nada perdeu da sua vivacidade e bondade. Onde quer que fosse era imediatamente reconhecido pelo seu físico ainda atlético, paradoxalmente combinado com uma longa e branca barba.

(Hull, p. 124. In: Nácher 2012)

Durante o período de treze anos em que foi director da missão (1955-1968), o Padre Alfonso Nacher construiu um dicionário da língua Fataluku. O contributo do texto para o conhecimento dos Fataluku é hoje reconhecido por Geoffrey Hull, nomeadamente pela sua contextualização etnográfica, resultante do facto do padre dar grande importância “aos aspectos antropológicos da pesquisa linguística” (Hull, 2003: 138). A relação e o compromisso do Padre Alfonso Nacher para com os Fataluku teve ainda outras componentes. Uma das que importa ressaltar é o seu envolvimento na oficialização da religião católica dos habitantes da região do leste de Timor, durante a sua permanência na missão de Lospalos entre 1979 e 1982. Um outro contributo mais indirecto de Alfonso Nacher para a vida timorense foi o facto, sublinhado por José Mattoso (2005), de ele ter influenciado a formação intelectual de Konis Santana (o importante líder da resistência timorense) que “lia livros e revistas emprestados pelo padre Alfonso Nacher” (Mattoso, 2005: 41).
A qualidade etnográfica deste dicionário pode ser exemplificada pela maneira como os significados de cada palavra se referem a práticas socioculturais. Assim, por exemplo, o dicionário indica que a palavra ira-foole significa: “bruxedo que faz um homem todo mascarado de negro, deitando sal numa nascente e empurrando o sal com uma vassoura para dentro. Depois disto foge por caminhos tortos para não ser apanhado pelo Diabo” (Nacher cit. in Hull, 2003: 162). O dicionário vai ainda oferecendo ricas informações sobre diferentes significados de uma mesma palavra, consoante não apenas contextos semânticos diversificados, mas também contextos de acção de significação diversa. Assim acontece na descrição do significado de ha’ulu, indicando que num primeiro sentido pode significar “terramoto”, como na frase ha’ulu mu’a hoke: “no terramoto a terra treme” ou ha'ulu mu’a hoke akam: “o terramoto não durou”; enquanto que, num segundo sentido, a mesma palavra Ha’ ulu (aqui grafada pelo autor com letra maiúscula) significa “O espírito que guarda as quatro colunas da terra, sustentando-as. Consideram-no [a Ha’ulu] o pai primeiro de todos os homens” (Nacher cit. in Hull, 2003: 165).
O legado deste dicionário de Alfredo Nacher está, em suma, no desenvolvimento de um estudo da língua Fataluku entendido na sua contextualização etnográfica. Para que significados como o de Ha’ulu remetessem para um entendimento antropológico mais vasto sobre a origem do mundo, da natureza e de vivências históricas dos Fataluku, teriam sido necessárias descrições etnográficas mais densas. Tal não foi e nem podia ter sido feito pelo padre Alfonso Nacher, pois implicaria uma contextualização do conhecimento que estaria longe dos seus interesses e motivações primordialmente religiosos e missionários.

(Viegas 2011, p. 3)

Indiscutivelmente, o linguista Geoffrey Hull deu um tratamento exemplar ao manuscrito original de Nácher, organizando-o para edição e publicação, oferecendo as notas introdutórias, corrigindo os erros tipográficos do original e adaptando as entradas do léxico à ortografia padronizada do INL (Instituto Nacional de Linguística) para maiores informações, acesse aqui. Porém, como trabalho científico, apresenta também certos pontos que necessitam de reparos para a pesquisa. Chamo atenção nesta postagem para dois principais: as omissões feitas por Hull do manuscritos original e maiores informações sobre a língua Fataluku.

Em relação às omissões, o autor afirma que "Infelizmente, limitações de espaço obrigaram-nos a omitir a maior parte das traduções tétum dos verbetes e expressões em fataluco." (p. 125). Atualmente, considero isso uma falha, já que, de certa forma, o manuscrito original é inacessível ao público e sua publicação está bem adaptado em relação ao conteúdo que Nácher escreveu, assim como os verbetes em Tetun e as expressões em Fataluku são dados linguísticos importantíssimos que deveriam ser publicados, principalmete por causa da escassez de material para pesquisa e para o ensino. Ainda, o autor justifica que tais omissões foram feitas, mas que "estes elementos da obra não serão desperdiçados, pois vão ajudar o Instituto Nacional de Linguística na elaboração de um vocabulário de tétum e fataluco." (p .125). Porém, não foi isso que aconteceu, pois há anos o INL está parado com entraves burocráticos, ausência de pessoal, falta de verba etc. Mesmo que alguns interessados argumentem que não, o fato é que desde aproximadamente 2005 o INL não produz/publica material ou pesquisa de impacto algum.  

Finalmente, as breves características da língua Fataluku oferecidas por Hull ao leitor são inexatas, já que, além de extremamente superficiais, deixam a desejar na área de fonologia e morfologia da língua. Para não me alongar mais do que já fiz nesta postagem, para maiores informações sobre a língua Fataluku, publicações e estudos linguísticos. peço ao leitor que consulte o seguinte link:
http://easttimorlinguistics.blogspot.com.br/2009/11/on-fataluku-language.html e para um estudo linguísticos valioso sobre a morfossintaxe do Fataluku, e com informações introdutórias atuais sobre a língua, consultar o artigo do linguista Aone van Engelenhoven, intitulado On derivational processes in Fataluku, a non- Austronesian language in East Timor:
http://www.academia.edu/3711452/On_derivational_processes_in_Fataluku_a_non-Austronesian_language_in_East_Timor.



Referências:

Nácher, Alfonso. Léxico Fataluco-Português. Dili: Salesianos de Dom Bosco Timor-Leste, 2012.

Viegas, S M. Três etnografias nos anos 1970: os Fataluku. In: Actas do Colóquio Timor: Missões Científicas e Antropologia Colonial. AHU, 24-25 de Maio de 2011. 

1 comment:

Afonso Soares said...

Por: Afonso Soares

A língua portuguesa tornou-se como uma das línguas oficiais da RDTL e depois de adquirir a sua independência o Governo tomou como política tantas maneiras para que essa língua fosse aprendida por todos os timorenses.
De facto, o Governo da RDTL criou cooperação com o da República Portuguêsa a fim de que este continua a prestar apoio no processo de ensino de língua portuguesa aos timorenses.
Nesta situação, os timorenses têm lutado bastante no processo de aprendizagem da respectiva língua. Durante a ocorrência deste processo de aprendizagem consegui identificar três situações distintas, nomeadamente: (1) Situação de aprender a língua portuguesa por motivo de obrigatoriedade, isto é, há pessoas que esse processo de aprendizagem é feito merramente porque existem alguns motivos que lhes exigem, ou seja, só se conseguem ultrapassar determinadas situações se aprenderem essa língua, por exemplo, o caso dos professores, existem alguns deles que aprendem simplesmente por ter receio de não ter mudanças nas suas carreiras (2) situação de aprender a língua portuguesa por razão de ter gosto pessoal, isto é, há pessoas que gostam de aprender por gosto pessoal e (3) Situação de aprender a língua portuguesa por estar envolvido num âmbito onde as pessoas só se comunicam em português, esta última situação é bastante acotecida no âmbito de trabalho das instituições públicas assim também em algumas instituições privadas, permitindo algumas organizações internacionais onde se lidam em português.
Segundo a meu ver, a criação de vários mecanismos para facilitar no processo de aprendizagem também pode permitir no entanto tais mecanismos são todos teóricos, pelo que é necessário criar também algumas formas para apoiar em termos práticos.
Segundo eu, os timorenses que aprendem português em Timor-Leste e conseguem ter domínio nessas duas formas anteriormente ditas, são aqueles que têm gosto pessoal porém existem um número maior de pessoas que embora tenham lutado bastante não conseguem escrever, conversar nem ler bem essa língua, esta situação foi o motivo principal que apresentei no número 1 e 3 do terceiro parágrafo supracitado.
Gostaria de fazer um apelo aos amigos e amigas timorenses, a língua portuguesa é oficial, pelo que a sua caráter de oficialidade não se pode manifestar apenas por Estado em si mas sim a cada um de nós também, assim continuem a aprender, tornando-o gosto pessoal seja de qualquer maneira vossa.

Aluno do curso de Direito da UNTL FUP